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terça-feira, 20 de julho de 2010

Uma conversa com... JOÃO SERRA


Rigor, frontalidade, determinação e simplicidade. Se tivéssemos que escolher quatro palavras para descrever em resumo o perfil de João Serra, estas seriam naturalmente as que viriam imediatamente ao de cima. Doutor em Economia, o actual Presidente do Conselho de Administração da Sociedade de Desenvolvimento Turístico das Ilhas de Boavista e Maio (SDTIBM) já tem um longo caminho percorrido na gestão pública em Cabo Verde, tendo sido Ministro das Finanças e Administração Pública, Secretário de Estado das Finanças, Presidente do CA do INPS e Presidente do IEFP.

Nesta entrevista que se segue – e que inaugura a sessão Conversas com Gestores aqui no "Por dentro das organizações" -, João Serra fala-nos da sua visão sobre a gestão e liderança, analisa criticamente os gestores caboverdeanos – especialmente os do sector público – e partilha connosco valiosos ensinamentos e recomendações. Oiçamo-lo, pois.

(Entrevista conduzida por Paulino Dias e Amílcar Aristides)

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Para começar esta nossa conversa, quem é João Serra?

João Serra é um Cabo-verdiano de 48 anos, pai de dois filhos menores formado e Doutorado em economia que há cerca de 20 anos vem exercendo as funções de gestor nas instituições públicas, mas também em algumas empresas, particularmente as de capitais públicos. João Serra julga ser uma pessoa dotada de um grande sentido de responsabilidade, profissionalismo e rigor que pauta a sua vida por elevados princípios éticos. Reconhece também que por ser muito exigente não é uma pessoa muito simpática, ou seja é uma pessoa muito reservada.


É reconhecido, todavia, como um dos grandes nomes da gestão em Cabo Verde, especialmente no sector público. O que é, para si, a gestão?

A gestão é um conceito relativamente moderno, hoje se fala muito da gestão, já há uma evolução em termos de conceito, mas para mim é a arte de administrar bem os recursos que são afectos a uma organização. Esses recursos nunca são ilimitados, são sempre precários, de modo que temos de aplicá-los da melhor forma possível para podermos atingir os objectivos que propomos na nossa organização. Isso requer, portanto, que se tomem decisões importantes, e essas decisões podem ser favoráveis ou desfavoráveis a determinados interesses dentro da própria organização ou então relativamente a terceiros, mas só assim se pode fazer uma gestão virada para objectivos e em conformidade com os métodos modernos existentes.


Há uma certa confusão entre “gerir” e “liderar”. Para João Serra o que é liderar, ou seja, como definiria liderança?

Bom, a nível dos especialistas há uma diferença entre liderar e gerir. Um gestor deve fazer as coisas boas, enquanto um líder deve fazer as coisas certas. Liderar para mim é ter sobretudo uma visão, é ter a vontade de assumir riscos e saber envolver os colaboradores na prossecução dos objectivos almejados por uma organização. Para mim, o líder para além de conhecimento deve ter algumas características que consideraria como sendo básicas, ou seja, auto-confiança, maturidade, perseverança e o carisma. Em relação a Cabo Verde, um meio pequeno onde quase todos se conhecem e onde há uma cultura muito enraizada de não querer ter problema com as pessoas, ser líder, nesse contexto, é também ter convicções muito fortes e, diria até, ser destemido e corajoso, sob pena de não poder cumprir cabal e eficazmente essas funções de liderança.


Agora que falou em Cabo Verde, deixe-me aproveitar para lhe colocar uma questão muito directa: qual é a sua opinião sobre os gestores, a gestão, a liderança dentro das empresas e organizações?

Em Cabo Verde já existe alguma experiência com a gestão. Julgo que há algumas práticas de boa gestão aqui em Cabo Verde, há alguns gestores que também são reconhecidos e que têm esse perfil de líder. Eu faria a seguinte distinção: por um lado os gestores públicos. Em relação aos gestores públicos, pessoalmente tenho algumas reservas, parece-me que da experiência que vivi até agora não temos sabido formar ou mesmo seleccionar adequadamente as pessoas que exercem essas funções a nível das instituições públicas. De um modo geral são pessoas um pouco avessas ao correcto exercício da autoridade e à assumpção do risco. Há também o problema de autonomia: para não terem problemas com potenciais interessados quase que canalizam o processo decisório para níveis de hierarquias superiores, mormente a nível do Governo ou então de outras entidades públicas. Falta, portanto, aos gestores públicos essa característica importante, que é ser auto-confiante, ser determinado, que é exercer a autoridade quando tiver de fazer isso e assumir o risco e as responsabilidades de que esta investido.
Também conheço e já tive oportunidade de trabalhar com bons gestores públicos aos quais não se aplica a caracterização que acabei de fazer. Mas infelizmente não são a maioria.
Em relação aos gestores do sector privado, aí tenho poucas experiências, mas parece-me que há gestores com provas dadas, que tomam decisões adequadas, que têm uma visão, zelam pelo que querem e, como tal, formatam as suas organizações um função dessa visão.


João Serra já tem um percurso profissional como gestor, como líder há vários anos, quais são os maiores desafios que já enfrentou enquanto gestor?

Eu já enfrentei vários desafios enquanto gestor, porque levo a minha forma de ser também para as funções que exerço e exerci até agora. Em primeiro lugar, parece-me que o rigor é um elemento fundamental na gestão e infelizmente a nossa cultura é um pouco adversa ao rigor, particularmente na gestão da coisa pública. Em segundo lugar, o envolvimento dos colaboradores e a partilha das responsabilidades também é uma faceta que não está ainda muito desenvolvida na gestão em Cabo Verde, mormente nas instituições públicas. Tive alguns desafios importantes com a minha passagempelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), onde posso dizer sem qualquer tipo de receio, que havia alguma cultura de um certo laxismo, irresponsabilidade e falta de visão e de rigor, porque parece-me os gestores que passaram pelo INPS e muitos dos seus próprios colaboradores não tinham essa visão de responsabilidades próprias de uma instituição que gere os fundos de segurança social. São instituições que podem ter alguma liquidez hoje, mas amanhã poderão ter dificuldades por causa da chamada dívida implícita, ou seja, aqueles que contribuem hoje podem não estar a beneficiar de todas as prestações mas no futuro, uma vez estando em reforma, poderão ter necessidades dessas prestações. Tomei uma série de medidas muito impopulares que me trouxeram alguns amargos de boca. Mas, felizmente, mais tarde pude constatar que muita gente reconhece a pertinência das medidas então tomadas, desde logo porque os resultados vieram demonstrar a sua necessidade.


Que lições João Serra retiraria dessas situações criticas que nos pudesse transmitir?

Talvez a lição maior é que um gestor deve tomar as medidas que tem de tomar, independentemente de estar a agradar ou desagradar este ou aquele, porque é fundamental sob pena de uma organização não sobreviver por causa da falta de medidas que poderiam ser tomadas atempadamente. Isso é muito importante, daí que eu tenha referido antes que uma das facetas de um gestor moderno é ter essa apetência, ou seja, a determinação no exercício das responsabilidades de que está investido. Portanto, a experiência maior em relação a isso tem a ver com essa determinação em fazer as coisas e tomar as decisões independentemente das consequências.


Já agora, falou muito em determinação, falou muito em coragem, para si qual é o perfil do colaborador cabo-verdiano no século XXI?

Hoje em dia temos que romper com a visão do emprego para fazer uma coisa só. Hoje em dia já não há emprego para toda a vida. A não ser no Estado, mas mesmo aí os empregos para toda a vida estão a escassear-se cada vez mais. Portanto, o colaborador moderno tem que ter essa noção, de que tem de ser flexível, aceitar funções que eventualmente possam não estar adequadas a àquelas para as quais foi contratado, tem que saber adaptar-se e desempenhar estas funções, também com eficácia, tem de ser criativo e imaginativo. Isso hoje em dia é importante em qualquer organização. Mas, sobretudo, o colaborador tem que identificar-se com a organização, e este aspecto também é uma das lacunas que temos em Cabo Verde: raras vezes o colaborador identifica-se com a sua organização, contrariamente à cultura oriental, onde esta característica está muito enraizada. Tem também que estar sujeito a mudanças que podem ocorrer, desde logo ao posto de trabalho ou local de trabalho. Outra coisa que constato enquanto gestor, é difícil transferir alguém de um determinado concelho para um outro, ou de uma ilha para outra, mas isso hoje em dia é importante, particularmente no mundo globalizado, onde há vários centros de produção e de complementaridades quanto ao exercício do objecto social de uma organização. Para mim, são essas as características de um colaborador moderno, para poder “encaixar-se”, digamos assim, numa organização do século XXI.


Uma última pergunta, saindo agora dos colaboradores e voltando aos gestores, se tivesse que dar UM conselho aos gestores caboverdeanos, qual seria esse conselho?

(Risos) Bom, não sei se estaria em condições de dar conselhos aos gestores caboverdeanos. Talvez, indo um pouco atrás, diria que o gestor tem que saber tomar as medidas no momento exacto, independentemente das consequências dessas medidas para o próprio gestor. Talvez seja essa a faceta que mais está a faltar aos gestores aqui em Cabo Verde, para além da falta do hábito de envolver os colaboradores. Porque a gestão em Cabo Verde é ainda muito pessoalizada, gira à volta do gestor, há uma forte tendência centralizadora, ou seja, de não delegar. Hoje em dia já não é possível uma única pessoa saber tudo e fazer tudo. Tem de saber coordenar, motivar e envolver e sacar as responsabilidades. Grosso modo, era isso que eu queria dizer aos nossos gestores. Como disse a minha experiência é mais na gestão de empresas públicas e instituições públicas, a nível da gestão privada não tenho muita experiência mas eu sei que também há problemas aí, de modo que, eventualmente, no futuro tenhamos que investir mais na formação dos gestores tendo em conta as exigências e desafios com que o país se confronta actualmente.


(Fotografias de Amílcar Aristides)
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